1 de Agosto de 2010
A liturgia deste domingo questiona-nos acerca da atitude que assumimos face aos bens deste mundo. Sugere que eles não podem ser os deuses que dirigem a nossa vida; e convida-nos a descobrir e a amar esses outros bens que dão verdadeiro sentido à nossa existência e que nos garantem a vida em plenitude.No Evangelho, através da “parábola do rico insensato”, Jesus denuncia a falência de uma vida voltada apenas para os bens materiais: o homem que assim procede é um “louco”, que esqueceu aquilo que, verdadeiramente, dá sentido à existência.Na primeira leitura, temos uma reflexão do “qohélet” sobre o sem sentido de uma vida voltada para o acumular bens… Embora a reflexão do “qohélet” não vá mais além, ela constitui um patamar para partirmos à descoberta de Deus e dos seus valores e para encontrarmos aí o sentido último da nossa existência.A segunda leitura convida-nos à identificação com Cristo: isso significa deixarmos os “deuses” que nos escravizam e renascermos continuamente, até que em nós se manifeste o Homem Novo, que é “imagem de Deus”.
LEITURA I – Co (Ecle) 1,2; 2,21-23
Vaidade das vaidades
O Livro de Qohélet é um livro de caráter sapiencial, escrito pelos finais do séc. III a.C.. Não sabemos quem é o autor… Em 1,1, apresenta-se o livro como “palavras de qohélet”; mas “qohélet” é uma forma participial do verbo “qhl” (“reunir em assembleia”): significa, pois, “aquele que participa na assembleia” ou, numa perspectiva mais ativa, “aquele que fala na assembleia”. O nome “Eclesiastes” (com que também é designado) é a forma latinizada do grego “ekklesiastes” (nome do livro na tradução grega do Antigo Testamento): significa o mesmo que “qohélet” – “aquele que se senta ou que fala na assembleia” (“ekklesia”).Este “caderno de anotações” de um “sábio” é um escrito estranho e enigmático, sarcástico, inconformista, polêmico, que põe em causa os dogmas mais tradicionais de Israel. A sua preocupação fundamental, mais do que apontar caminhos, parece ser a de destruir certezas e seguranças. Levanta questões e não se preocupa, minimamente, em encontrar respostas para essas questões.O tom geral do livro é de um impressionante pessimismo. O autor parece negar qualquer possibilidade de encontrar um sentido para a vida… Defende que o homem é incapaz de ter acesso à “sabedoria”, que não há qualquer novidade e que estamos fatalmente condenados a repetir os mesmos desafios, que o esforço humano é vão e inútil, que é impossível conhecer Deus e que, aconteça o que acontecer, nada vale a pena porque a morte está sempre no horizonte e iguala-nos com os ignorantes e os animais… Não é um livro onde se vão procurar respostas; é um livro onde se denuncia o fracasso da sabedoria tradicional e onde ecoa o grito de angústia de uma humanidade ferida e perdida, que não compreende a razão de viver.
Em concreto, no texto que hoje a liturgia nos propõe, o “qohélet” proclama a inutilidade de qualquer esforço humano. A partir da sua própria experiência, ele foi capaz de concluir friamente que os esforços desenvolvidos pelo homem ao longo da sua vida não servem para nada. Que adianta trabalhar, esforçar-se, preocupar-se em construir algo se teremos, no final, de deixar tudo a outro que nada fez? E o “qohélet” resume a sua frustração e o seu desencanto nesse refrão que se repete em todo o livro (25 vezes): “tudo é vaidade”. É uma conclusão ainda mais estranha quanto a “sabedoria” tradicional “excomungava” aquele que não fazia nada e apresentava como ideal do “sábio” aquele que trabalhava e que procurava cumprir eficazmente as tarefas que lhe estavam destinadas.A grande lição que o “qohélet” nos deixa é a demonstração da incapacidade de o homem, por si só, encontrar uma saída, um sentido para a sua vida. O pessimismo do “qohélet” leva-nos a reconhecer a nossa impotência, o sem sentido de uma vida voltada apenas para o humano e para o material. Constatando que em si próprio e apenas por si próprio o homem não pode encontrar o sentido da vida, a reflexão deste livro força-nos a olhar para o mais além. Para onde? O “qohélet” não vai tão longe; mas nós, iluminados pela fé, já podemos concluir: para Deus. Só em Deus e com Deus seremos capazes de encontrar o sentido da vida e preencher a nossa existência.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão e atualização, as seguintes linhas:
Quase poderíamos dizer que o “qohélet” é o precursor desses filósofos existencialistas modernos que refletem sobre o sentido da vida e constatam a futilidade da existência, a náusea que acompanha a vida do homem, a inutilidade da busca da felicidade, o fracasso que é a vida condenada à morte (Jean Paul Sartre, Albert Camus, André Malraux…). As conclusões quer do “qohélet”, quer das filosofias existencialistas agnósticas, seriam desesperantes se não existisse a fé. Para nós, os cristãos, a vida não é absurda porque ela não termina nem se encerra neste mundo… A nossa caminhada nesta terra está, na verdade, cheia de limitações, de desilusões, de imperfeições; mas nós sabemos que esta vida caminha para a sua realização plena, para a vida eterna: só aí encontraremos o sentido pleno do nosso ser e da nossa existência.
A reflexão do “qohélet” convida-nos a não colocar a nossa esperança e a nossa segurança em coisas falíveis e passageiras. Quem vive, apenas, para trabalhar e para acumular, pode encontrar aí aquilo que dá pleno significado à vida? Quem vive obcecado com a conta bancária, com o carro novo, ou com a casa com piscina num empreendimento de luxo, encontrará aí aquilo que o realiza plenamente?
Para mim, o que é que dá sentido pleno à vida?
Para que é que eu vivo?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 89 (90)
Refrão: Senhor tendes sido o nosso refúgio através das gerações.
Vós reduzis o homem ao pó da terrae dizeis: «Voltai, filhos de Adão».Mil anos a vossos olhos são como o dia de ontem que passoue como uma vigília da noite.
Vós os arrebatais como um sonho,como a erva que de manhã reverdece;de manhã floresce e viceja,de tarde ela murcha e seca.
Ensinai-nos a contar os nossos dias,para chegarmos à sabedoria do coração.Voltai, Senhor! Até quando…Tende piedade dos vossos servos.
Saciai-nos desde a manhã com a vossa bondade,para nos alegrarmos e exultarmos todos os dias.Desça sobre nós a graça do Senhor nosso Deus.Confirmai, Senhor, a obra das nossas mãos.
LEITURA II – Col 3,1-5.9-11
A segunda leitura deste domingo é, mais uma vez, um trecho dessa Carta aos Colossenses, em que Paulo polemiza contra os “doutores” para quem a fé em Cristo devia ser complementada com o conhecimento dos anjos e com certas práticas legalistas e ascéticas. Paulo procura demonstrar que a fé em Cristo (entendida como adesão a Cristo e identificação com Ele) basta para chegar à salvação.Este texto integra a parte moral da carta (cf. Col 3,1-4,1): aí Paulo tira conclusões práticas daquilo que afirmou na primeira parte (que Cristo basta para a salvação) e convoca os Colossenses a viverem, no dia a dia, de acordo com essa vida nova que os identificou com Cristo.
O texto que nos é proposto está dividido em duas partes.Na primeira (vers. 1-4), Paulo apresenta, como ponto de partida e como base sólida da vida cristã, a união com Cristo ressuscitado. Os cristãos, pelo batismo, identificaram-se com Cristo ressuscitado; dessa forma, morreram para o pecado e renasceram para uma vida nova. Essa vida deve crescer progressivamente, mas manifestar-se-á em plenitude, quando Cristo “aparecer” (a Carta aos Colossenses ainda alimenta nos cristãos a espera da vinda gloriosa de Cristo).Na segunda parte (vers. 5.9-11), Paulo descreve as exigências práticas dessa identificação com Cristo ressuscitado.
O cristão deve fazer morrer em si a imoralidade, a impureza, as paixões, os maus desejos, a cupidez, numa palavra, todos esses falsos deuses que enchem a vida do homem velho; e, por outro lado, deve revestir-se do Homem Novo – ou seja, deve renovar-se continuamente até que nele se manifeste a “imagem de Deus” (“sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai do céu” – cf. Mt 5,48). Quando isso acontecer, desaparecerão as velhas diferenças de povo, de raça, de religião e todos serão iguais, isto é, “imagem de Deus”. Foi isso que Cristo veio fazer: criar uma comunidade de homens novos, que sejam no mundo a “imagem de Deus”.A identificação com Cristo ressuscitado – que resulta do Batismo – é, portanto, um renascimento contínuo que deve levar-nos a parecer-nos cada vez mais com Deus.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e atualização podem partir das seguintes questões:
Ser batizado é, na perspectiva de Paulo, identificar-se com Cristo e, portanto, renunciar aos mecanismos que geram egoísmo, ambição, injustiça, orgulho, morte – os mesmos que Jesus rejeitou como diabólicos; e é, em contrapartida, escolher uma vida de doação, de entrega, de serviço, de amor – os mecanismos que levaram Jesus à cruz, mas que também o levaram à ressurreição. Eu estou a ser coerente com as exigências do meu Batismo? Na minha vida há uma opção clara pelas “coisas do alto”, ou essas “coisas da terra” (brilhantes, sugestivas, mas efêmeras) têm prioridade e condicionam a minha ação?
O objetivo da nossa vida (esse objetivo que deve estar sempre presente diante dos nossos olhos e que deve constituir a meta para a qual caminhamos) é, de acordo com Paulo, a renovação contínua da nossa vida, a fim de que nos tornemos “imagem de Deus”. Aqueles que me rodeiam conseguem detectar em mim algo de Deus?Que “imagem de Deus” é que eu transmito a quem, diariamente, contata comigo?
A comunidade cristã é essa família de irmãos onde as diferenças (de raça, de cultura, de posição social, de perspectiva política, etc.) são ilusórias, porque o fundamental é que todos caminham para ser “imagem de Deus”. Isto é realidade?Nas nossas comunidades (cristãs ou religiosas), todos os membros são tratados com igual dignidade, como “imagem de Deus”?
Convém não esquecer que a construção do “Homem Novo” é uma tarefa que exige uma renovação constante, uma atenção constante, um compromisso constante. Enquanto estamos neste mundo, nunca podemos cruzar os braços e dar a nossa caminhada para a perfeição por terminada: cada instante apresenta-nos novos desafios, que podem ser vencidos ou que podem vencer-nos.
ALELUIA – Mt 5,3
Aleluia. Aleluia.
Bem-aventurados os pobres em espírito,porque deles é o reino dos Céus.
EVANGELHO – Lc 12,13-21
Continuamos a percorrer o “caminho de Jerusalém” e a escutar as lições que preparam os discípulos para serem as testemunhas do Reino. A catequese, que Jesus hoje apresenta, é sobre a atitude face aos bens.A reflexão é despoletada por uma questão relacionada com partilhas… Um homem queixa-se a Jesus porque o irmão não quer repartir com ele a herança. Segundo as tradições judaicas, o filho primogênito de uma família de dois irmãos recebia dois terços das possessões paternas (cf. Dt 21,17. É possível que só fossem repartidos os bens móveis e que, para guardar intacto o patrimônio da família, a casa e as terras fossem atribuídas ao primogênito). O homem que interpela Jesus é, provavelmente, o irmão mais novo, que ainda não tinha recebido nada. Era freqüente, no tempo de Jesus, que os “doutores da lei” assumissem o papel de juízes em casos similares… Como é que Jesus Se vai situar face a esta questão?
Jesus escusa-Se, delicadamente, a envolver-Se em questões de direito familiar e a tomar posição por um irmão contra outro (“amigo, quem me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?” – vers. 14). O que estava em causa na questão era a cobiça, a luta pelos bens, o apego excessivo ao dinheiro (talvez por parte dos dois irmãos em causa). A conclusão que Jesus tira (vers. 15) explica porque é que Ele não aceita meter-Se na questão: o dinheiro não é a fonte da verdadeira vida. A cobiça dos bens (o desejo insaciável de ter) é idolatria: não conduz à vida plena, não responde às aspirações mais profundas do homem, não conduz a um autêntico amadurecimento da pessoa. A lógica do “Reino” não é a lógica de quem vive para os bens materiais; quem quiser viver na dinâmica do Reino deverá ter isto presente.A parábola que Jesus vai apresentar na sequência (vers. 16-21) ilustra a atitude do homem voltado para os bens perecíveis, mas que se esquece do essencial – aquilo que dá a vida em plenitude. Apresenta-nos um homem previdente, responsável, trabalhador (que até podíamos admirar e louvar); mas que, de forma egoísta e obsessiva, vive apenas para os bens que lhe asseguram tranquilidade e bem-estar material (e nisso, já não o podemos louvar e admirar). Esse homem representa, aqui, todos aqueles cuja vida é apenas um acumular sempre mais, esquecendo tudo o resto – inclusive Deus, a família e os outros; representa todos aqueles que vivem uma relação de “circuito fechado” com os bens materiais, que fizeram deles o seu deus pessoal e que esqueceram que não é aí que está o sentido mais fundamental da existência.A referência à ação de Deus, que põe repentinamente um ponto final nesta existência egoísta e sem significado, não deve ser muito sublinhada: ela serve, apenas, para mostrar que uma vida vivida desse jeito não tem sentido e que quem vive para acumular mais e mais bens é, aos olhos de Deus, um “insensato”.O que é que Jesus pretende, ao contar esta história? Convidar os seus discípulos a despojar-se de todos os bens? Ensinar aos seus seguidores que não devem preocupar-se com o futuro? Propor aos que aderem ao Reino uma existência de miséria, sem o necessário para uma vida minimamente digna e humana? Não. O que Jesus pretende é dizer-nos que não podemos viver na escravatura do dinheiro e dos bens materiais, como se eles fossem a coisa mais importante da nossa vida. A preocupação excessiva com os bens, a busca obsessiva dos bens, constitui uma experiência de egoísmo, de fechamento, de desumanização, que centra o homem em si próprio e o impede de estar disponível e de ter espaço na sua vida para os valores verdadeiramente importantes – os valores do Reino. Quando o coração está cheio de cobiça, de avareza, de egoísmo, quando a vida se torna um combate obsessivo pelo “ter”, quando o verdadeiro motor da vida é a ânsia de acumular, o homem torna-se insensível aos outros e a Deus; é capaz de explorar, de escravizar o irmão, de cometer injustiças, a fim de ampliar a sua conta bancária. Torna-se orgulhoso e auto-suficiente, incapaz de amar, de partilhar, de se preocupar com os outros… Fica, então, à margem do Reino.Atenção: esta parábola não se destina apenas àqueles que têm muitos bens; mas destina-se a todos aqueles que (tendo muito ou pouco) vivem obcecados com os bens, orientam a sua vida no sentido do “ter” e fazem dos bens materiais os deuses que condicionam a sua vida e o seu agir.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, ter em conta os seguintes elementos:
A Palavra de Deus que aqui nos é servida questiona fortemente alguns dos fundamentos sobre os quais a nossa sociedade se constrói. O capitalismo selvagem que, por amor do lucro, escraviza e obriga a trabalhar até à exaustão (e por salários miseráveis) homens, mulheres e crianças, continua vivo em tantos cantos do nosso planeta… Podemos, tranquilamente, comprar e consumir produtos que são fruto da escravidão de tantos irmãos nossos? Devemos consentir, com a nossa indiferença e passividade, em aumentar os lucros imoderados desses empresários/sanguessugas que vivem do sangue dos outros?
Entre nós, o capitalismo assume um “rosto” mais humano nas teses do liberalismo econômico; mas continua a impor a filosofia do lucro, a escravatura do trabalhador, a prioridade dos critérios de planificação, de eficiência, de produção em relação às pessoas. Podemos consentir que o mundo se construa desta forma?
Podemos consentir que as leis laborais favoreçam a escravidão do trabalhador?
Que podemos fazer?
Nós cristãos – nós Igreja – não temos uma palavra a dizer e uma posição a tomar face a isto?
Qualquer trabalhador – muitos de nós, provavelmente – passa a vida numa escravatura do trabalho e dos bens, que não deixa tempo nem disponibilidade para as coisas importantes – Deus, a família, os irmãos que nos rodeiam. Muitas vezes, o mercado de trabalho não nos dá outra hipótese (se não produzimos de acordo com a planificação da empresa, outro ocupará, rapidamente, o nosso lugar); outras vezes, essa escravatura do trabalho resulta de uma opção consciente… Quantas pessoas escolhem prescindir dos filhos, para poder dedicar-se a uma carreira de êxito profissional que as torne milionárias antes dos quarenta anos… Quantas pessoas esquecem as suas responsabilidades familiares, porque é mais importante assegurar o dinheiro suficiente para as férias na Tailândia ou na República Dominicana… Quantas pessoas renunciam à sua dignidade e aos seus direitos, para aumentar a conta bancária… Tornamo-nos, assim, mais felizes e mais humanos?
É aí que está o verdadeiro sentido da vida?
O que Jesus denuncia aqui não é a riqueza, mas a deificação da riqueza. Até alguém que fez “voto de pobreza” pode deixar-se tentar pelo apelo dos bens e colocar neles o seu interesse fundamental… A todos Jesus recomenda: “cuidado com os falsos deuses; não deixem que o acessório vos distraia do fundamental”.